Especial: a vida dos excêntricos irmãos Miyao, que comem e dormem no tatame

27/12/2014 10:04

Especial: a vida dos excêntricos irmãos Miyao, que comem e dormem no tatame

 

Corpo sarado, cabeça raspada, orelha de “couve-flor”, tatuagens e cara de mau. Este é o estereótipo de um lutador de Jiu-Jitsu. Do lado oposto ao padrão pré-estabelecido, encontram-se dois dos melhores lutadores da atualidade. Franzinos, tímidos, de baixa estatura e com inseparáveis pares de óculos. Os excêntricos irmãos Paulo e João Miyao são apaixonados pela arte suave como poucos. A vida deles se restringe aos quatro lados do tatame da academia. É sobre ele que os gêmeos, de 23 anos, comem, dormem e, obsessivamente, treinam.

Nascidos em Andirá, no Paraná, os irmãos Miyao são, há quatro anos, alunos de Cícero Costha, dono do projeto social “Lutando pelo Bem”, em São Paulo. O professor os conheceu em uma edição do Campeonato Brasileiro da CBJJE, quando ainda envergavam a faixa azul e procuravam espaço em uma cidade repleta de oportunidades e torneios.

Irmãos Moasas

Os irmãos Paulo e João Miyao chamam a atenção por fugirem do “padrão” de um lutador (Foto Eduardo Ferreira)

“Já dava para ver que dariam trabalho. Eles me pediram uma chance porque precisavam evoluir. Souberam aproveitar e, hoje, vivem do Jiu-Jitsu, que é o que eles gostam, e estão conquistando o mundo dessa forma”, afirma Cícero, responsável por dar a faixa preta à dupla.

Paulo e João Miyao são figurinhas fáceis nos lugares mais altos do pódio desde as faixas coloridas. Os gêmeos inseparáveis acumularam títulos, prêmios e se tornaram referência na academia. A única coisa que segue inalterada é a timidez da dupla, que, quando dá entrevista, não costuma falar mais do que algumas palavras, proferidas com trejeitos de quem está pouco à vontade diante da câmera – ou de um simples gravador.

“É difícil conversar com eles, são muito centrados, focados no que desejam”, afirma Cícero, por telefone, convocando os irmãos para atenderem a reportagem da TATAME.

“Pede para mandar as perguntas pelo Facebook”, respondem, em uníssono, após os insistentes pedidos do professor, que se desculpa ao não conseguir convencê-los.

Se quando o assunto é entrevista os irmãos Miyao pouco se interessam, o mesmo não pode ser dito em relação aos treinamentos. A força de vontade dos lutadores contagia até seus companheiros de treino, como a faixa-preta Luiza Monteiro, na equipe desde 2011.

“Eles são bem bitolados, dedicados, metódicos. Eu nunca os vi descansando. Uma vez, vi o João sem treinar e estranhei. Quando percebi, ele estava colocando gelo no joelho. O treino começa ao meio-dia e termina 15h. Eles vão além do tempo. Meia hora antes do treino das 17h, já estão de quimono. Quando acaba, às 19h, eles continuam testando posições e vão até mais tarde. Eles possuem uma cabeça aberta para o Jiu-Jitsu. São grandes inspirações e bem parceiros, ajudam todo mundo. Toda vez que acordo cansada, eu penso: ‘Os Miyao estão treinando. E eles são campeões’”, destaca a niteroiense, apoiada pelo bicampeão mundial Leandro Lo, um dos principais nomes do time.

“Certa vez, quando iam para Abu Dhabi, eles treinaram de 10 da manhã até as 10 da noite. Foi incrível. Eles treinavam com todo mundo que chegava, ficavam como uns robôs fazendo posições repetidamente”.

Academia ou Dormitório?

Quando desembarcaram em São Paulo, os Miyao não tinham condições financeiras que viabilizassem o aluguel de um apartamento. Atualmente, ministram seminários e contam com o apoio de patrocinadores. Entretanto, seguem morando na academia, onde dormem sobre o tatame, utilizado como colchão.

“Eu acordo e já vou treinar, é mais fácil para mim. Não preciso pegar ônibus ou outro transporte. Todo dia é dia”, justifica Paulo, cujo discurso se assemelha ao do irmão, em resposta enviada por e-mail.

“Estou muito à vontade na academia. Aqui, estamos 24h focados no Jiu-Jitsu. Não tem acomodação. É tempo ruim o tempo todo”, defende João.

Cícero Costha já tentou fazer com que os irmãos desistissem da ideia de morar na academia, onde costumam dormir os atletas recém-chegados. Nem mesmo as palavras do mestre surtiram efeito.

Paulo Miyao no absoluto do Mundial de Jiu Jitsu, onde venceu Keenan Cornelious (Foto Eduardo Ferreira)

Paulo Miyao no absoluto do Mundial de Jiu Jitsu, onde venceu Keenan Cornelious (Foto Eduardo Ferreira)

“Eles têm uma condição melhor agora. Mas, se acostumaram e gostam de ficar na academia. Já tentei arrumar um espaço para eles, mas não quiseram. Perguntei duas vezes… Não falo mais nada. Eles não querem perder nem um minuto de treino e sentem-se bem lá, então, eu os deixo à vontade”.

O mesmo tatame que serve para dormir e treinar é o local escolhido pelos lutadores na hora do almoço. Nem para comer Paulo e João Miyao vão para a rua.

“Eu nunca os vi fora da academia. Eles recebem a comida lá mesmo. De vez em quando, vão ao mercado. De resto, treinam duro o dia inteiro. Aos domingos, acho que vão à igreja”, diz Luiza Monteiro.

Devotos do Jiu-Jitsu, Paulo e João Miyao têm uma relação comovente, quase religiosa com a arte suave. O esporte domina o cotidiano dos lutadores, que até mesmo nos poucos momentos de conversa falam sobre a modalidade.

“Eles pensam no Jiu-Jitsu o tempo todo, fazem as mesmas coisas. De vez em quando, entram na internet para falar com a família e veem vídeos de posição. Eles são inseparáveis. Comem a mesma comida, dormem no mesmo lugar… De vez em quando, discutem, mas logo depois, estão dando risada de novo”, conta Cícero.

O grande objetivo, de conquistar o Mundial de Jiu-Jitsu na faixa preta, domina os irmãos, que jogam os planos de namorar para escanteio.

“No momento, eu só estou pensando no título”, frisa Paulo Miyao, que encontra em João o mesmo ponto de vista.

“O foco tem que estar 100% no Jiu-Jitsu, não posso me preocupar com outras coisas”.

A estratégia de respirar Jiu-Jitsu vem dando resultado. Paulo, que é peso-pluma, fez história em 2013 ao, depois de conquistar o peso, vencer o absoluto contra Keenan Cornelius, de 88kg. João também não fica atrás e coleciona títulos, como o do Campeonato Europeu e o próprio Mundial. Humildade e determinação os Miyao têm de sobra, logo, o sucesso na graduação máxima parece questão de tempo.

Dente para quê?

Paulo e sua ‘marca registrada’ (Foto Eduardo Ferreira)

Diferenciar Paulo e João Miyao fisicamente é para poucos. Somente quem convive com os atletas diariamente consegue atentar para as pequenas diferenças na fisionomia dos gêmeos. Apenas um detalhe aparente denuncia quem é quem: Paulo não possui um dos dentes da frente.

Colocar um novo dente e preencher a “janelinha” é sinônimo de parar de treinar. E, de acordo com Paulo, esse preço é muito alto.

“O dente não faz diferença no meu Jiu-Jitsu. E eu gosto dessa marca, pois ‘um guerreiro não pode se orgulhar de um corpo sem cicatrizes’”.

 

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